O problema é grave, mas invisível. O hábito de bater nas crianças para “educá-las” faz parte da tradição familiar portuguesa. Vem lá de trás, é uma herança dos nossos antepassados, introduzida pela mão pesada dos jesuítas.
Durante inúmeros anos, foram imensas as criaturas que adoptaram a dor e o sofrimento como principais instrumentos de educação das suas crianças e jovens. Dito assim, hoje, parece exagero, todavia, os nossos filhos têm tudo o que necessitam, o que tem demais em levarem umas palmadas, de vez em quando, idêntico ao que ocorreu com a maioria de nós durante a nossa juventude?
É vero que há algum tempo aquém, as crianças, jovens, mulheres e idosos eram subjugados a castigos impetuosos pelo chefe da família, provedor e soberano absoluto dos seus domínios, incluindo a vida, a liberdade e o decoro das pessoas.
Actualmente, são poucos os que discutem o direito de bater nas crianças, aparentemente legítimo, conferido a pais e responsáveis, tais como os avós, tios, padrastos, madrastas, irmãos, padrinhos, professores e educadores.
O facto é que, presentemente, qualquer adulto incumbido de tomar conta de uma criança ganha automaticamente o apanágio de admoestá-la fisicamente.
Em verdade vos digo que muitos dos nossos antepassados suportaram atrocidades e tiranias durante a sua infância e transmitiram o vírus da violência familiar de geração em geração. Quantas crianças se transformaram em adultos áridos e instáveis, agressores de mulheres, pais e mães impiedosos e intransigentes, maridos criminosos, dementes sexuais e pedófilos? Em todos os casos, adultos desgraçadamente infelizes.
O sistema patriarcal da nossa ilha solidificou o poder pleno do homem e a relação dissemelhante nas relações familiares. Os castigos físicos, constantes e cruéis, aplicados indiscriminadamente em crianças, meninas e mulheres, eram tolerados e tratados como “assunto de família”. E assim permaneceu, mesmo quando a sociedade e a legislação repudiaram, uma a uma, as relações sociais violentas, a dominação de um homem sobre outro e o desrespeito à dignidade.
É deveras surpreendente que os castigos físicos ainda façam parte da vida de tantas crianças — as maiores vítimas estão na faixa etária dos seis anos — apesar dos progressos das ciências que estudam e analisam a conduta e o inconsciente do homem.
É assombroso e lastimável que, em pleno século XXI, a sociedade admita a violência física, desde que sem “exageros”, já que isso significa deixar excessivas crianças à mercê das aspirações, carências e psicopatias dos adultos e das suas paixões, fragilidades e quimeras. Das sovas programadas com determinados objectos, até pontapés, empurrões e socos ocasionais, tudo serve para alguns adultos aliviarem a dor, a revolta e a humilhação que carregam no mais profundo da sua alma.
Este tema — bater ou não nas crianças — é ordinariamente argumentado com decoro e superficialidade, como assunto de pouca ou nenhuma importância no contexto dos problemas relacionados com as crianças, e somente quando mostra a sua face carrasca, apavorante, impensável… é que ganha contornos corpóreos, e nesses casos (alguns recentemente expostos à comunidade pela comunicação social) a violência extrema de alguns pais e mães parece-nos longínqua da palmadinha afectuosa, e têm a mesma origem: a certeza de que a dor física corrige as crianças.
Será que a prerrogativa que têm os pais de dar um bom açoite “quando não obedecem com palavras” é a mesma que levam algumas mães a calcinarem as mãos dos seus filhos, por faltas mais graves: mexer no fogão ou na máquina de lavar roupa, abrir o pacote de bolachas, riscar a parede do quarto com um determinado marcador?
Acredito, sinceramente, que todo e qualquer Ser Humano, deste nosso planeta Terra, tem o singelo direito a viver os sumptuosos anos da sua infância sem dor e sem medo.
Tenho dito!
“A violência não é força, mas fraqueza, nem nunca poderá ser criadora de coisa alguma, apenas destruidora”.
Benedetto Croce, in. “La Storia come Pensiero e come Azione"